José Sarney – Ex-Presidente da República
Reavivo lembranças. Um primeiro almoço de sábado, há mais de quarenta anos, na rua Áurea, em Santa Teresa, no Rio, onde conheci Jorge Amado, na casa do “ultraboagente”, santo de minha devoção, Odylo Costa Filho. Presentes Manuel Bandeira, Drummond, Guimarães Rosa, Afonso Arinos, Peregrino Júnior e outras iconográficas figuras da história da inteligência brasileira. Tímido poeta da província, recolhi-me no silêncio: eles existiam, e eu tinha a glória de vê-los.
Ainda não vencera a idade da emoção, as inquietudes da mocidade. Jorge Amado era um deus da minha geração, aquele que escrevera e recriara o mito do “Cavaleiro da Esperança”, livro disfarçado em embrulho tosco, passando de mão em mão para não ser descoberto pela polícia de Vargas. O “ABC de Castro Alves” nos revelava um espaço épico do poeta romântico e condoreiro das “Vozes d’África”. Depois, mergulhamos no “Mar Morto”, em “Capitães da Areia”, em “Terras do Sem Fim” e entramos fundo no universo de sua obra de muitos mundos, heróis, santos, pulhas, boêmios, belas e fascinantes mulheres, que povoavam o paraíso de suas histórias – novelas e novelos a se desdobrarem numa renovação contínua -, esperadas e imaginadas em novos livros.
A personalidade de Jorge Amado não se esgotava no genial escritor. Era um admirável contador de “estórias”; eternas na palavra escrita, passageiras no gosto da conversa. Ele amava a cultura da alegria, o sabor da picardia, da malícia e dos relatos fesceninos de coisas impuras, mas sem pecado, no gozo e no gosto da roda de amigos, em que corria o rio tranquilo do “causeur”, desde o recriar as lembranças da crônica de sua família, tendo a figura central de dona Lalu, sua mãe, até a ação dos jogos de peças e chistes, em que se divertiam e reciprocamente se gargalhavam com Calazans, Caribé, James, Mário Cravo, Caymmi e tantos que habitavam o seu generoso coração no viver baiano.
São lembranças. Nele, tudo era unidade: juntos, indissolúveis, o talento e a simplicidade. O Jorge Amado raro, em que se fundiam o riso, o olhar, o levantar delicado das sobrancelhas, com o brilho da malícia, da inteligência, da perspicácia e do saber ler e escrever a alma das pessoas. Jorge, na coroa de sonetos de uma mesa farta, ávido por descobrir sabores e perfumes. Não posso esquecer o seu jeito muito pessoal de pegar o pão, molhar no copo de vinho e, através do pão, degustar o vinho.
Morreu com Jorge Amado um espaço na literatura brasileira que não se repetirá. Até porque o barro das raízes populares, onde garimpou para construir sua obra, mudou e vai mudar. Escritor universal, seu mundo e o Brasil começavam na Bahia.
Um mês antes de sua última internação, estivemos juntos na casa do Rio Vermelho, em Salvador. Ali, mais de 30 anos de uma convivência dele com o leitor, amigo e devoto. Jorge jogava paciência. Já estava liberto de todas as atribulações da alma. Conversou pouco. Quis saber de Roseana, sua constante parceira do “jogo do dicionário”, de que ele tanto gostava. Seus olhos, já murchando, de visão baça, não tinham perdido, todavia, a inteligência e o brilho da vida. Mas já estava liberto da alegria e da tristeza. Vestia a roupa da eternidade, guardado pela deusa Zélia Athenéia.
Quando o grande pintor Floriano Teixeira morreu, Jorge lembrou-me seu encontro com Pablo Neruda, em que procurou saber notícias dos velhos companheiros comuns do exílio. Neruda respondeu-lhe: “Não me pergunte por ninguém, todos já morreram”.
E agora, Jorge, a quem perguntar?
Rilke, quando soube da morte de Rodin, escreveu: “Todos os grandes homens já morreram”.