23 de novembro de 2024
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José Sarney – Ex-Presidente da República

Quando olharmos o mundo com vista embaciada, tudo parece muito confuso. É visão de uma crise permanente. Crise, por definição, é um problema que se tornou agudo, sem solução à vista. Sempre existirão situações desse nível. Deus poderia ter feito o mundo sem necessidade de ajustamentos. Não o fez para que os homens pudessem participar da obra da criação. Deu-lhes liberdade para errar e consertar. Gozamos do poder de escolher entre o bem e o mal e ganhar a sobrevivência com grande esforço.

O Brasil tem mantido ao longo de sua história uma alternada convivência do otimismo com o cultivo constante do desastre. Em alguns momentos celebramos a euforia do país do futuro, em outros, a louvação de nossas imensas riquezas, o ufanismo do verde-amarelismo, a descoberta de nosso orgulho. Isso tudo foi insuficiente para soterrar a permanente invenção do abismo, aquele precipício bem brasileiro, que ronda o nosso cotidiano e que a todo momento está à nossa volta. “Estamos à beira do abismo” é o chavão da rotina dos discursos políticos. Carlos Lacerda, ao tempo de Vargas, com a sua força panfletária e a eclosão da chamada República do Galeão, em 54, não se conteve e proclamou: “Agora acabou tudo: roubaram até o abismo!”.

Com a Revolução de 64, fechados os espaços políticos, a coisa piorou. Iniciou-se uma lavagem cerebral de que o Brasil não merecia a presença de seus filhos, envergonhados dele, e somente existiam dois caminhos: ou a luta heroica ou o exílio. O governo, por seu lado, usou a fórmula infeliz de pregar o “ame-o ou deixe-o”. Era doutrinação do quanto pior, melhor, e a política de terra arrasada. A verdade é que o Brasil resistiu. Os que não estão envolvidos no jogo do poder e fora da retórica vazia têm um imenso amor e orgulho desta terra excepcional. “Se eu não fosse brasileiro, queria ser brasileiro”, é a alma do povão. Ele gosta do Brasil, sentimento muito dividido nas elites.

Joaquim Nabuco, quando defendia o Gabinete João Alfredo, depois da Abolição, procurando resistir à avalanche de agravos contra ele, dizia que o mais difícil em política é deter um mar de opiniões negativas, um consenso de contrariedade.

O caldo de cultura que se forma nesses momentos é de afastar qualquer defesa. A tendência é o esquecimento das coisas positivas e uma exacerbação do negativismo. Nada é alvo de reconhecimento. Sou um daqueles que não gostam de atirar a primeira pedra. Quem governa, governa com circunstâncias e não escolhe o terreno em que atua. Há sempre o desejo de fazer o melhor. Só o tempo diz se a conduta adotada atingiu seus objetivos. O governo opera dentro de possibilidades e limitações.

Jamais deixei de expressar minhas divergências com a política econômica e com outras políticas públicas. Mas está em jogo o êxito do país e o momento é de grandeza. Não é instante de manter nem conferir controvérsias. É o de aproximar intenções e convergências. É o de tomar vacina contra a cultura da crise que nos joga no fundo do poço, no baixo astral e em alta fossa.

Afinal, o Brasil não é um país artificial. Ele existe pela força do seu povo, sétima economia mundial, grande parque industrial competitivo, mercado interno de proporções significativas e bons recursos humanos.

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