José Sarney – Ex-Presidente da República
O gosto de mandar não é só das pessoas. Os países, mais do que os homens, sublimam-se na compulsão do poder, em busca de construir e ampliar impérios. Ter a hegemonia mundial foi sempre uma gigantesca ambição.
Depois da Segunda Guerra, duas potências disputaram palmo a palmo esse espaço. Foi a Guerra Fria. Com o seu fim, surge uma única superpotência, incontrastável, enfeixando todos os poderes, políticos e militares. Nada se pode mover sem sua bênção. Os americanos, solitários, tomam decisões, no exercício de sua liderança ou na defesa dos seus interesses, como gerenciadores dos problemas do futuro da humanidade; o primeiro deles, o controle das armas nucleares. Para isso temos o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), não assinado apenas por Índia e Israel. Será o suficiente? Assim foi até agora, mas a situação dá sinais de mudança.
Como dizia Samuel Huntington, professor e presidente da Academia de Harvard para Assuntos Estratégicos (o que foi o interlocutor de Golbery sobre o
processo de distensão iniciado por Geisel), o atual sistema de poder mundial passa a ser unimultipolar, isto é, exercido em condomínio. Os Estados Unidos podem tudo, mas não podem prescindir do apoio das potências europeias, do Japão e do braço de um organismo internacional, além da concordância de Rússia e China. Na Guerra do Golfo foi fácil, o que não ocorre nos Bálcãs.
Articulava-se uma área de contenção e contestação a essa “entente” na chamada “doutrina Primakov”, o então primeiro-ministro russo, que pregava um triângulo estratégico China, Rússia e Índia, capaz de exercer poder de veto sobre o mando absoluto dos EUA.
O conflito de Kosovo nos mostrou coisas mortas. Ieltsin, essa figura entre o burlesco e a ousadia, sem contenções nem equilíbrio, deixou escapar a ameaça que não esperávamos ouvir tão cedo. Foi possível ser uma fanfarronada, um blefe. Mas isso não se faz com um problema tão sério: ameaçar o mundo com uma guerra mundial, com armas nucleares. Se a hipótese é impossível, a afirmação nos dá a dimensão das nossas vulnerabilidades. Se um homem doente, fraco politicamente, respondendo a um processo de impeachment no Congresso, com credibilidade abalada dentro e fora do seu país, podia falar assim, como julgar ultrapassada a hipótese de catástrofe que nos atormentou em 40 anos de medo?
Hoje, o clube nuclear tem como sócios EUA, França, Israel, China, Índia, Paquistão e Ucrânia. Uma lista tão grande e o mais absoluto descontrole do antigo parque tecnológico de recursos humanos e materiais da antiga URSS dão a dimensão do imenso problema que é mantê-lo em segurança e controle. É verdade que o poderio americano é maior que todos juntos. No passado, esse poder capacidade de dissuasão. Hoje, esse argumento não nos tranquiliza, porque significa sairmos vitoriosos com a destruição mundial.
Mais do que nunca, devemos banir as armas nucleares da face da Terra. Enquanto existir uma delas, ninguém dormirá tranquilo.
É triste voltarmos ao princípio de tudo. Nossa superpotência, única e incontrastável, passa a ser oca, ou, como dizia Brzezinski, “superpotência benevolente”. O jogo volta a ser o de sempre.
O que se delineia no século 21 não é aquele período de tranquilidade num mundo globalizado, em que tínhamos apenas de discutir a ordem econômica. Está presente o fantasma da guerra.
A vida é bela, mas o mundo é feio!