José Sarney – Ex-presidente da República
Eu conto a história de Maria Aurora. Era uma filha deficiente de Odylo Costa, filho, uma das melhores criaturas que Deus já pôs na face da Terra, e de Nazareth, a quem Manuel Bandeira, seu compadre, com Drummond e Afonso Arinos, assinavam juntos ser um anjo celeste. Um casal que, nos versos da “Boca da Noite”, Odylo confessou: “Éramos dois, somos apenas um”.
Maria Aurora, na sua face risonha, alheia ao mundo, presa de sua própria felicidade, era uma flor na casa. Odylo e Nazareth não a escondiam, participava das reuniões do solar de Santa Tereza em lugar de honra e, no seu mundo, imóvel, recebia o carinho de todos, passando do sofrimento à alegria. Depois Deus a levou e choramos sua ausência e a falta que fez.
Odylo começou a sua luta pelos deficientes. Na mesma época, seu filho mais velho, adolescente, Odylinho, defendendo a namorada, foi assassinado por um menino de rua. Lembro quando o abracei no cemitério. Nenhum sentimento de ódio. Era a bondade cristã. Disse-me: “Deus quis, assim seja, Deus seja louvado”. Criou as condições para a recuperação do assassino do filho e entrou na luta em favor dos menores abandonados, apóstolo de duas causas: dos excepcionais e dos menores delinquentes.
Foi tão forte esse exemplo que ele o passou à filha Teresa Costa d’Amaral, superintendente do Instituto Brasileiro de Defesa dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência. Sensibilizado pela causa, entreguei-lhe a Corde, órgão diretamente ligado à Presidência para enfrentar o problema. Hoje, o órgão praticamente desapareceu e eis Teresa, de porta em porta, colocando tudo o que tem para prosseguir na luta em favor dos deficientes. É uma luta de duas gerações. Dizem as estatísticas das Nações Unidas que os excepcionais são 10% da nossa população. É gente igual a nós, que recebeu a graça da vida, mas não a oportunidade da nossa qualidade de vida.
Não havia escolas adequadas, eles não tinham o direito de aprender, de ter lazer, de se locomover sem entraves, de trabalhar. Tomemos o exemplo do Senai e do Senac. Não há cursos de treinamento para eles. Não os aceitam. No sistema oficial de atendimento, não recebem prótese nem órtese. Amputam-lhes a perna e saem sem prótese ou cadeira de rodas que a substitua. Não entra na cabeça de ninguém que a rede pública de um país com um PIB de US$ 900 bilhões não assegure aos que não andam, não veem, não ouvem ou que de algum modo têm deficiências acesso aos mecanismos que lhes facilitem a vida.
A Constituição Federal e a lei 7.853 asseguram uma discriminação positiva aos deficientes: que eles sejam privilegiados, não excluídos.
O assunto passou a ser marginal e mergulhado na apatia. Sem corações tocados para o amor ao próximo, ficou entregue à caridade de instituições pobres, sem auxílio, sem subvenção, sem apoio, ou então ao sacerdócio de pessoas como Teresa d’Amaral, pedindo de porta em porta, mas, como Vieira, pedindo e protestando.
Lembro o sorriso puro de Maria Aurora, no seu mundo, no seu sonho. Mas, para mim, ela é um símbolo de todas as Auroras que, como ela, tiveram a graça da vida, sem viver, mas permanecem para nos despertar o sentimento da solidariedade e do gosto de ser humano.