José Sarney – Ex-Presidente do Brasil –
Muito já se escreveu sobre a morte de Cássia Eller, sua tragédia e o mistério que sempre ronda o fim das celebridades, como ela, jovem, ousada, amadurecida no domínio de sua arte e, de repente, ferida em pleno vôo, fato que os romanos simbolizavam naquelas colunas partidas, marco dos heróis jovens tombados em plena glória. Volto ao tema para refletir sobre o destino.
As revelações que se fizeram sobre sua alma atormentada e triste nos remetem aos personagens mais pungentes de Dostoievski e de Dickens.
É difícil a convivência com o sucesso. E, cada vez mais, o sucesso é um exigente produto de consumo. O público tem fome de ícones e de símbolos. As pessoas são obrigadas a sucumbir ao sucesso. Os ídolos são cobrados e levados a extremos de sacrifícios e renúncias, sendo o menor deles o da privacidade. E privacidade não diz respeito somente à vida privada, mas ao direito de cada um ficar só, consigo mesmo, dentro do latifúndio da sua solidão, que é invadido pelos problemas que rondam o êxito: compromissos, vaidades, intrigas, disputas e toda sorte de sentimentos corrosivos do afeto. É preciso estar preparado para enfrentá-los.
Aí entra a questão básica da felicidade, da paz interior da doutrina cristã. O discurso mais comovente que já ouvi foi do senador Agenor Maria. Ele, simples marinheiro, de repente chega ao Senado. Começa a conviver com problemas políticos e pessoais. Em comovente pronunciamento, ele conta a sua vida de sucesso e de vitória. Mas, melancolicamente, conclui: “Tudo isso aconteceu comigo, mas o tempo mais feliz da minha vida foi quando eu vendia água em Caicó, no Rio Grande do Norte. Só possuía um jumento, dois tonéis e os meus fregueses. Não tinha nenhum dos problemas que me atormentam hoje”.
Quando vi a tragédia da cantora Cássia Eller, uma mocinha que saiu de Brasília, dos bares do circuito underground da cidade, com o baixo Hoffman na mão, olhos no futuro. Chegou ao mais alto ponto da fama com a alma arruinada, revoltada, escrava do sucesso de ser infeliz, que aumentou o seu infortúnio e a deprimiu.
O velho do Restelo, de Camões, diz aos que partem na aventura da busca de fortuna e fama em mares desconhecidos: “Oh! Vã cobiça dessa vaidade”. Para que serve tudo isso?
A sociedade industrial gera valores materiais. Os valores do espírito vão ficando como inúteis. A gente, sobretudo a juventude, mergulha no alcoolismo, nas drogas, no delírio das formas mais destruidoras da alegria. No fim desse túnel está a violência.
A história de Cássia Eller permanece interrogando nossos corações. A mocinha de Brasília, a jovem roqueira dos ritmos alucinantes, morre dizendo “não consigo mais relacionar-me com ninguém, só sirvo para ganhar dinheiro”, um testemunho e uma denúncia à nossa sociedade, voltada à busca compulsiva de bens e à sublimação de todos os prazeres.
É como se, numa premonição, Caetano Veloso, quando fez a composição “As Gatas Extraordinárias”, a ela destinada, estivesse falando pela voz do destino: “Tenho que pegar essa criatura / Tenho que pegar, tenho que pegar/ Tenho que pegar”.