José Sarney – Ex-Presidente da República
O tempo destrói tudo. E constrói. É dele que se faz a vida. Comovem, como exemplo, pessoas que, sendo o presente, são passos do passado. Lembro nossos velhos comunistas, intransigentes, ranzinzas nas posições inabaláveis. Como os santos, acreditavam em Deus e no Diabo. Contra este, matavam; por Aquele, morriam.
Essas reflexões ocorreram-me quando li uma entrevista de Santiago Carrillo, o velho líder comunista espanhol. Ele é da geração e da estirpe dos nossos Prestes, João Amazonas, Giocondo Dias, Álvaro Cunhal, o português. Isso significa vidas – umas mais, outras menos – de exílio, prisões, clandestinidade. Lembro quando transcorreram, na Espanha, os 25 anos da matança da rua Atocha, 55, em Madri, começo da abertura política. O rei Juan Carlos tinha dado o sinal verde. Adolfo Suarez iniciou o processo. Um grupo de ultradireita invadiu o escritório dos advogados dos presos comunistas e assassinou cinco deles, cantando “Cara al Sol”, o hino franquista. Queriam deter a abertura.
Carrilo depõe: “A partir desse instante, tudo mudou”. Todos se uniram para enfrentar o radicalismo. Surgiu Moncloa e a legalização do Partido Comunista Espanhol. Quando se fala na democratização espanhola, esquecemos que foi marcada por um banho de sangue.
O Brasil fez a transição mais pacífica de todas. Lembro-me da legalização dos partidos comunistas. Hoje parece um assunto banal. Ser comunista despertava ódio e ameaças. Tancredo Neves, diante do problema, que era crucial para os militares, disse que a legalização do PC era um assunto do Judiciário, não do Executivo. Quando assumi o governo, minha conduta foi remover de uma vez todos os impasses. Tancredo, com sua força política e sua liderança, poderia ter estratégias de aproximação sucessivas. Eu não. Tinha de ganhar tempo para evitar reações. Assim, antes de qualquer discussão, surpreendi a todos recebendo Giocondo Dias, João Amazonas e os líderes dos partidos chamados fora-da-lei. A partir daquele instante, não havia mais o que discutir sobre partidos comunistas. Estavam incorporados ao processo político, com o aval do convívio com o presidente, o que acabava com o preconceito e com a discriminação.
Conheci então, de perto, Giocondo Dias, de quem Jorge Amado gostava muito. Homem simples, patriota e bom. E João Amazonas, que depois assumira a sua aposentadoria, cercado pelo respeito nacional, uma vida de firmeza missionária. Quando conversava com ele, ouvia os passos de sua geração de resistência. Há alguns anos, encontrei-o em um avião, já no esforço da velhice, ainda na paixão da luta. É o mesmo idealista. Prestes, pessoalmente, vi uma só vez – foi visitar-me numa peregrinação que fez ao Congresso. A foto de sua visita foi aproveitada num filme que rodou nos quartéis para mostrar a cumplicidade dos comunistas com a chapa Tancredo-Sarney.
Vejo com o mesmo olhar Castelo Branco, Gustavo Corção, Alceu Amoroso Lima, Sobral Pinto, Raul Pila, Juarez Távora, Austregésilo de Athayde, Barbosa Lima Sobrinho, Arthur Bernardes, Tristão da Cunha. De todos, esquerda ou direita, podíamos discordar, mas jamais deixar de respeitar suas idéias e louvar suas vidas. Nossos velhos são a nossa história.
Hoje, muitos falam da transição democrática citando pessoas com um sotaque de discriminações.
Eu, oleiro desse período, que amassei o duro barro da restauração das instituições, quando vejo a Espanha lembrar seus massacres político-ideológicos, recordo a paz e a tolerância com que o Brasil voltou à democracia.