José Sarney – Ex-Presidente da República
Era o ano de 1985. Morria Tancredo. Entrávamos num difícil período de contorção da história. Às gigantescas esperanças da abertura somavam-se as imensas demandas impossíveis. Em meio às pressões políticas, greves e agitações sociais, surgiu um problema que passou de raspão no noticiário dos jornais. Uma coluna de mais de cem guerrilheiros das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) entrara em território brasileiro, em São Gabriel da Cachoeira, e fizera reféns em busca de abastecimento.
Uma rápida ação militar conjugada das nossas Forças Armadas deslocou para aquela região um contingente que imediatamente resolveu o problema. Era um fato isolado? Foi o que tivemos de analisar. Atrás desse incidente, estava uma questão estratégica que tínhamos de equacionar. O Brasil, ao longo de sua história, esqueceu os vastos espaços do Norte, de seus limites amazônicos, para fixar-se nas hipóteses de guerra e ameaças no Sul. Implantamos unidades poderosas ao longo de nossas fronteiras com Uruguai e Argentina. Nas nossas escolas de Estado Maior ensinava-se que dessa direção vinha o perigo. O Mercosul e a integração iriam mudar essa visão. O que acontecera em São Gabriel da Cachoeira me fazia raciocinar que o perigo, agora, vinha do norte. A zona em ebulição era o Caribe, com Cuba, Nicarágua, Guatemala e Colômbia, onde grupos terroristas, associados ao narcotráfico, agiam na proximidade do nosso território. Virgílio Barco, então presidente da Colômbia, desencadeara feroz combate a esses grupos, que, acossados, fugiam, e os espaços de que eles dispunham para esconder-se eram as vastas regiões desabitadas e não vigiadas das fronteiras secas do Brasil.
Era necessário e urgente um plano de integração das calhas norte dos rios Amazonas e Solimões. Um programa que transformasse aquelas fronteiras mortas em fronteiras vivas, com atendimento às populações locais e programas de saúde, educação, Previdência e assistência social. Estabelecemos pólos em Benjamin Constant, Tabatinga, Alto Solimões, São Gabriel da Cachoeira e muitos outros. Nascia o Projeto Calha Norte. Perguntaram-me, quando em 1988 visitei a Colômbia, se a inspiração do projeto era militar. Respondi que a inspiração viera do barão do Rio Branco, que alertava serem os problemas de fronteira os mais graves para as relações entre países. Eles não desaparecem, ficam latentes. Precisávamos, já que não tínhamos disputas territoriais em nossos limites, transformar essas fronteiras em áreas de convivência e aproximação.
O incidente em Iauaretê não deve nem de longe ser passionalizado. Não vejo nenhum problema constitucional em o Brasil permitir ações de pouso de aeronaves militares em nosso território. Isso jamais caracteriza “passagem de tropas”. O Brasil já colaborou com a Colômbia naquela região, por intermédio da Comara, órgão da Sudam, no apoio aeroportuário para a construção da base de Mitu, palco dos atuais conflitos. O que não devemos fazer é apoiar ações antiguerrilha, estas sim de exclusiva responsabilidade da Colômbia. Não somos os Estados Unidos com a cultura de guerra para desencadear conflitos pelo pouso para abastecimento de helicópteros com feridos em Iauaretê. Isso se resolve numa nota diplomática. Fizemos a paz do Peru e Equador e não devemos aparecer como intolerantes.
O episódio não teve dimensão nem densidade e pode ter a conotação de estarmos insensíveis ao terror e ao narcotráfico.